domingo, 6 de março de 2011

Devaneando: entre Olhos de Cão Azul e A Poética do Devaneio I

Li o conto Olhos de Cão Azul, de Gabriel Garcia Marquez, há muitos anos, e ele me marcou de um modo que ainda descortino para mim mesma aos poucos. É, além de uma experiência estética, uma experiência também psicanalítica. Minha relação com sonhos sempre foi muito forte desde a mais tenra idade. Recordo-me de alguns que tive ainda na fase quase bebê. Na verdade tenho uma memória desse tempo bem ativa. Fatos extraordinários são muito vivos na galeria de imagens de minha memória. Geralmente figuram num espaço intermediário entre o sonho, o devaneio e o campo da cotidianidade. Às vezes se faz nebulosa a linha que definiria qualquer dessas áreas.

A cotidianidade, por vezes tida como o que levaria - ilusoriamente - ao sempre, ao eterno, interrompe-se, abruptamente ou não, com o imponderável, com o impermanente, com o perecível. O sonho nem sempre goza do status atribuído ao cotidiano, mesmo que nem possamos desvincular um do outro. Crê-se imediatamente que é sonho o sonho, ilusão imanente. Somos, por excelência, sonhadoras e o que seria da humanidade sem os sonhos? Muitas vezes nos dão matéria prima para a melhor compreensão de nós mesmos. Na experiência noturna, somos capazes de sonhar , vertiginosamente, muitos sonhos diferentes e nem sempre recordamos todos eles. Mas sonhos são, também, estranhos e " A estranheza de um sonho pode ser tal que nos parece que um outro sujeito vem sonhar em nós". No devaneio, entretanto, a solitude nos acompanha. É um estado da alma, "um fenômeno da solidão, um fenômeno que tem sua raiz na alma do sonhador". Somos, na solidão do devaneio, criantes, inclinadas a criar condições para fazer emergir a poesia. Bachelard, no encalço dos adjetivos úteis a dizer poéticamente, chamará de "devaneio poético", "devaneio cósmico" esse estado da alma que produz "matéria mais propícia para ser modelada em poemas".

Alguns sonhos chegam à consciência e estes talvez passem a ocupar a galeria dos que serão lembrados. Aqueles com os quais - talvez - dialogaremos numa instância que poderá interferir, de forma transformadora, nos passos que daremos no dia a dia. O devaneio é essa dimensão que nos coloca diante de um novo tempo. Um tempo de descanso, de paz, de felicidade. "Existem faixas de tranquilidade em meio aos pesadelos" dirá nosso filósofo francês. Sonhos, devaneios e cotidianidade constituem, assim, uma tríade que nos projeta à dança da vida.

Na solidão de minha alcova, numa experiência de 'onirismo desperto', ruminando A Poética do Devaneio, no que concerne ao feminino das palavras, ao conflito entre o masculino e o feminino no interior da linguagem ( temas para outra escritura ), assalta-me a lembrança do tempo que vivi, mais intensamente, a repercussão na mente e no corpo, da leitura de Olhos de Cão Azul. Mais que uma leitura uma vivência, que também é leitura. Como a personagem feminina do conto de Gabriel Garcia Marquez, saía por aí procurando aquele que me aparecia em sonhos. Escrevia em cadernos, agendas e, em alguns lugares por onde passava; em arroubos de absurda inclinação, ensaiava deixar escrito Olhos de Cão Azul. Passados muitos anos, decidi que levaria isso ao teatro ou ao cinema, dada a insistente centelha que ainda queimava. De algum modo, precisava contemplar essa demanda do espírito, da alma, surgida no encontro onírico com tais personagens.

Certa vez fui surpreendida por um amigo, também ator, que me fez o convite para que encenássemos esse conto. Viver no palco o casal que se encontra durante anos em sonhos e que, ao acordar, ele esquece e ela o procura por todos os lugares sem sucesso. Após o período em que nos afastamos - eu e meu amigo - e após reencontro e pacificação, pergunto-me se essa encenação contemplaria os anseios instigados e ilustrados pela leitura do conto de Marquez.

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