sábado, 12 de março de 2011

Dingo e Mamãe Memésia: a poética do vivido...

Desde os tempos mais remotos de minha infância, na mais brumosa lembrança, mora em mim o gosto pela poesia. Digo que o gosto mora em mim porque tenho a sensação de que é algo que independe de minha vontade, não é algo que eu tenha escolhido como quando escolho com quem morar. A poesia me acolhe, por exemplo, na travessia entre certas lembranças que tenho de minha infância em Banabuiú e a projeção que faço destas a partir do que sou hoje. É como se não tivesse vivido de fato tudo o que lembro do que vivi naquele período em que morava na Rua do Arame, vizinho à casa de D. Nemésia, que eu chamava de Mamãe Memésia, e seu marido, Seu Domingos, que eu chamava Dingo.

Dingo e Mamãe Memésia são como personagens de um conto de fadas. Filha de uma jovem mãe inexperiente e um pai que se ausentava constantemente devido às viagens a trabalho, tinha no casal a acolhida afetiva própria às famílias calorosas e amorosas, com suavidade e delicadeza. O terreiro de sua casa era lugar de encontro da vizinhança que sentava nos bancos dispostos em círculo sob uma bela algaroba para narrar e ouvir histórias, recitar poesia de cordel ou mesmo jogar conversa fora. Eu estava sempre por perto, muitas vezes atraída e amedrontada, devido à descrição de histórias e personagens fantásticos e também ao suspense que caracterizava a maior parte das narrativas. Costumava, então, correr para dentro da rede, mantida permanentemente armada no corredor da casa. Cobria-me toda com lençol e com a varanda da rede e era comum sentir que, por mais coberta que estivesse, nada me impedia de quase ver o objeto amedrontador. Sentia como se atrás de mim tivesse ido toda a legião de personagens dos quais eu havia fugido.

Até hoje tenho dúvidas se alguém mais real, que eu suspeitava pudesse ser um dos filhos do casal, se divertia aproximando-se lentamente e mexendo na rede elevando assim meu estado de medo ao terror absoluto. Nesse instante até a respiração paralisava. Essa era a única hora do dia em que meus prediletos vizinhos, envolvidos na trama noturna de sua imaginação, se transformavam em seres estranhos e fantasmagóricos, muitas vezes transformando meus sonhos em pesadelos.

Nada disso, entretanto, me afastava dali nem tampouco manchava a doce imagem que eu tinha de Dingo e Mamãe Memésia, e o afeto que eu sentia - e sinto - por eles. Quando nascia o dia seguinte, eu contava as horas e os passos de volta à misteriosa casa de sonhos. Sempre via Dingo saindo. Ele costumava caminhar muito pela cidade. Nunca soube exatamente porque caminhava tanto, mas, certamente, tem a ver com o fato de que era o provedor da casa. Alto, magro e de cabelos de algodão, mantinha um eterno sorriso afetuoso no rosto e sua fisionomia se aproximava a de um duende. Parecia acolher a todos do mesmo modo, com infinita bondade, para além do lar, para além da cidade.

Enquanto Dingo, para mim, era a cidade, o mundo, Mamãe Memésia era a casa, o lar. Ela parecia não sair nunca, estava sempre ali, cuidando de tudo, com sua marcante quietude. Além de cozinhar no seu fogão à lenha, mantinha tudo limpo, arrumado. Era guardadora de mistérios. Eu caminhava por toda a casa procurando vestígios do que se passara à noite. A longa casa - janelas e portas abertas, corredor do quintal ao terreiro, a claridade do dia ocupando-a por inteiro, os afazeres domésticos de um cotidiano comum - não parecia ser locação de viagens e performances de seres de outros mundos. Parecia, entretanto, que todo o trabalho diurno de Mamãe Memésia tinha por objetivo cobrir com o manto do mistério os vestígios da noite.

Mesmo assim, eu tinha a impressão, algumas vezes, que os objetos da casa suspiravam, gemiam, falavam com vozes tênues, chamando-me. Não devia ser mesmo uma tarefa fácil fazer com que se aquietassem enquanto nos movíamos entre eles. Eu dava voltas numa incansável investigação da presença do mundo para onde viajara à noite. Ele estava ali, em algum lugar, eu sabia. Talvez dentro do baú, um dos móveis com que mantinha uma relação mais estreita. Pequena, me metia nele, entre lençóis e colchas de cama, inalando o delicioso cheiro de tudo, até que Mamãe Memésia vinha me chamar oferecendo alguma guloseima, no que eu atendia prontamente.

Já vai longe esse tempo. Depois que vim morar em Fortaleza perdi contato físico com os dois e não saberia dizer quando Dingo e Mamãe Memésia passaram a morar nesse lugar da minha memória entre o sonho e a realidade. Sei que ainda posso sentir seu cheiro, ouvir suas vozes, sentir seu calor. E que suas imagens e seu afeto me inspiram e me acompanham sempre.

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